Universidade Estadual da Paraíba valoriza Cordel desenvolvendo várias iniciativas sobre o gênero
Não é incomum quando se fala em cordel, conhecer a história de poetas que não sabem ler nem escrever. Porém, “de cabeça”, como se diz, eles dominam todo tipo de rimas. Na memória, guardam por anos a fio suas criações e recitam tudo. Aí vem alguém, decora, conta para outro, esse outro fala para vários outros, outra pessoa se prontifica a digitar e replicar e, assim, sai o folheto.
“O cordel está ligado ao folheto de feira, onde transita muita gente do povo, gente simples e que não tem necessariamente acesso à escolaridade. Sabemos, entretanto, que as relações entre os indivíduos das chamadas ‘camadas populares’ e a esfera da escrita nunca estiveram vinculadas estritamente à escola. Claro que ela tem um papel fundamental ao falarmos na participação dos sujeitos no ato de escrever, mas outros campos de socialização também operam, e muito bem, como agências de letramento. A UEPB compreende isso, basta que se veja o engajamento dela para incluir nossos artistas e afastar essa visão elitista da Cultura, atrelada aos denominados ‘cânones literários’”, explicou o poeta e técnico administrativo da Universidade Estadual da Paraíba, Josenildo Lima, que usa o pseudônimo J. Lima.
Mesmo quando se teve a oportunidade de ir à escola, escrever um cordel não tem nada de fácil. Os autores pesquisam a fundo o tema escolhido, fazem resumos, analisam as estrofes, compõem cada verso, depois precisam avaliar meticulosamente se a inspiração casou bem com as sílabas poéticas e a sonoridade. “Criar é se consumir”, disse algum vate, dos inúmeros que já atravessaram noites insones, até verem no papel pelo menos um verso que de fato preste, dado que toda pessoa, ao criar, é um pouco arrastada por inclinações perfeccionistas.
“Ainda assim vai ser difícil, ou talvez no País nem exista, um poeta do gênero que integre alguma Academia de Letras. Já um político, que escreveu um texto ou dois, é bem mais corriqueiro encontrar como ‘imortal’. Também não é pouco frequente ver os tradicionalistas da Língua Portuguesa torcendo o nariz, dizendo que há palavras erradas no folheto”, endossou.
Não foram poucos, aliás, os escritores que sofreram preconceito por isso. O dinamarquês Hans Christian Andersen (1870-1875), por exemplo, um dos maiores contistas do universo infantojuvenil de nosso tempo, autor, entre outros, de “O Patinho Feio” e “A Pequena Sereia”, teve uma infância de pobreza e só pôde estudar realmente sua língua natal na idade adulta. Em sua autobiografia, ele narra como diversas vezes foi surpreendido por críticas cruéis.
Apenas em 2018 a Literatura de Cordel foi reconhecida como patrimônio cultural imaterial brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), mas, bem antes, a UEPB enxergava esse trabalho como a crônica mais genuína dos saberes do nosso povo. Totalmente entrelaçada ao cotidiano nordestino, a poesia dos folhetos ganhou cada vez mais destaque na Instituição, notadamente nos últimos oito anos. Tal cenário refere-se não só ao aspectos da memória e captação, com a Biblioteca de Obras Raras Átila Almeida e a Sala de Cordel do Museu de Arte Popular da Paraíba (MAPP), mas incentivando diretamente os artistas, seja na área de publicação, no que trata da promoção de eventos e apoio a iniciativas envolvendo o gênero, seja efetuando orientação aos cordelistas para que sejam inscritos em editais públicos e privados de fomento.
Homenagens e lançamentos de obras com a participação dos bardos, a propósito, têm sido uma constante no MAPP. Poetas do porte de Antônio Patrício Sousa [1927-2016], o “Toinho da Mulatinha”, que lá esteve em 2014, trouxeram o fulgor de seu talento ao Museu e foram bastante prestigiados pela população local. A xilogravura, igualmente, foi lembrada, com palestras abertas e artistas de renome, a exemplo de Jô Oliveira e Fred Ozanan, como a preleção que houve com eles sobre esse tópico, em 2016, por exemplo. Já em 2017, um dos pontos altos foi o lançamento do livro “Cordelistas Contemporâneos”, publicado pela Editora Veloso e a Nordestina Editora, e organizado pelo poeta Zeca Pereira, além da apresentação do espetáculo “Fala Sertão: da Linguagem do Cordel à Cultura do Vaqueiro”, com os poetas Lucarocas e Chico Neto, repleto de toadas e aboios. No ano seguinte, estendendo a sua capilaridade, a Pró-Reitoria de Cultura (Procult) da UEPB, fez-se presente às ações de culminância do 3° Curso Introdução à Literatura de Cordel, realizado no Memorial José Camelo de Melo Resende, em Guarabira.
A Instituição apoiou, ainda, desde o começo, eventos hoje consolidados como o “Desafio Estado X Estado”, que acontece anualmente no Teatro Municipal e congrega uma miríade de cantadores do Nordeste. Outras ações na mesma trilha, a exemplo do “Festival da Nova Geração do Repente” (Fenoger) e o “Festival de Mulheres do Improviso” também obtiveram o auxílio da UEPB.
Agora, a UEPB e a Procult preparam-se para o lançamento de 10 cordéis abordando a temática dos 100 anos de Jackson do Pandeiro. Isso porque, em 2019, a Universidade abriu um edital para realizar o primeiro concurso literário do gênero cordelístico, na Instituição. A iniciativa se deu em parceria com a Academia de Cordel do Vale do Paraíba (ACVPB). Denominado “Concurso de Cordel Jackson do Pandeiro: 100 anos do Rei do Ritmo”, o certame contou com a eleição de uma Comissão Julgadora, para que fossem apreciados os trabalhos inscritos. Após todo o processo, os primeiros 10 colocados receberam como premiação o direito de serem publicados pela Gráfica da UEPB.
Jackson em Cordel
Para J. Lima, com esse edital a UEPB mostrou na prática que possui um interesse real em cuidar do artista regional e valorizá-lo. “É difícil encontrar uma ação dessas. Sem dúvida, o lançamento será um dia especial para quem participou. Quando o segmento acadêmico e científico reconhece o saber popular, causa uma certa animação nos artistas. Eu me recordo que um dos poetas ficou muito feliz ao ser informado do edital e depois essa alegria dobrou, pois ele foi um dos vencedores. Imagine, mostrar para o seu filho que ganhou um concurso universitário. Cada premiado vai receber sua parcela em cordéis publicados e pode citar isso no currículo, o que conta como um diferencial”, asseverou Josenildo.
O pró-reitor de Cultura, José Cristóvão de Andrade, ficou tão contente com o edital que ele mesmo sentiu-se motivado: escreveu um cordel sobre Jackson e declamou para uma grande plateia, durante o anúncio dos ganhadores do Concurso. Aberto, o evento ocorreu em 13 de dezembro de 2019, Dia Nacional do Forró e aniversário de Luiz Gonzaga, em plena calçada do Açude Velho, defronte ao monumento “Os pioneiros da Borborema”. Era noite de encerramento do 3º Encontro de Sanfoneiros e Tocadores de Fole de Oito Baixos. “A contribuição que a UEPB dá a esses autores é enorme, porque ela estimula, divulga, sensibiliza, empreende de verdade para mostrar quanta criatividade o nosso Estado possui. Temos um tesouro aqui”, afirmou o pró-reitor.
Junto com J. Lima e o professor Andrade, a professora Joseilda Diniz, uma das curadoras da Sala de Cordel do MAPP, encampou a ideia do edital, que teve a adesão completa da reitoria da UEPB. “É essencial que haja esse diálogo, sem intermediários, com a cadeia produtiva. Atrás da Universidade há um passado de história com o cordel, basta pensar que dispomos do maior acervo da América Latina. A administração atual honrou essa história, dando todo suporte para que essas práticas culturais aconteçam e se realizem na Instituição e no seu entorno. A comissão julgadora era composta por poetas do cordel. Trazendo os fazedores dessa cultura para avaliar as obras de seus contemporâneos, a UEPB reverencia do jeito certo essa arte”, concluiu Joseilda.
Em breve, os cordéis estarão prontos, posto que a Procult está ultimando a confecção deles para enviar à Gráfica da UEPB. Por ordem de classificação, os selecionados no certame foram Antonio de Pádua Gomes da Silva (Jackson do Pandeiro Centenário: Retalhos de sua Vida); José Ferreira de Lima Neto (Retalhos Históricos do Rei do Ritmo); Anne Karolynne Santos de Negreiros (Jackson em Cordel: O Rei do Pandeiro); José Roberto da Silva Moraes (100 Anos de Jackson Brasileiro); Tiago Monteiro Pereira (Nos Passos do Rei do Ritmo); Vicente Ferreira de Amorim Filho (Jackson do Pandeiro – Luz em Forma de Ritmo), Ana Bárbara da Cunha Luciano (O Pandeiro Criador e Jackson Nosso Senhor); Janduhi Dantas Nóbrega (A História do Marido da Mulher que Virou Homem); Lucas de Lima Oliveira (O Rei do Pandeiro e o Pandeiro do Rei); Mazukyevicz Ramon Santos do Nascimento Silva (Do Pandeiro ao Mundo Inteiro: Jackson do Povo Brasileiro).
Cordel no Museu
No começo do ano passado, desenhava-se um novo projeto para acontecer no Museu de Arte Popular da Paraíba. A expectativa era movimentar o MAPP com uma extensa programação, capaz de contemplar a cadeia produtiva do Cordel em sua amplitude, mas não apenas isso: objetivava promover periodicamente o encontro entre os artistas do gênero e o público. A atividade tinha como pilar a Academia do Cordel do Vale do Paraíba, através do presidente Marconi Araújo.
Várias tratativas foram postas em marcha, envolvendo principalmente Marconi e a Procult da UEPB, por meio da professora Joseilda Diniz. Mais tarde, aos dois caberia a coordenação do projeto, intitulado “Cordel no Museu”. “Nesse espaço privilegiado e acrescente-se, muito bem localizado, os poetas poderiam dialogar entre si, acerca da produção de cada um, articularem-se com vistas aos editais e festivais, bem como mostrar e comercializar seus folhetos. É uma ação vitoriosa para uma demanda que existia”, revelou Marconi.
Iniciada em abril de 2019, a atividade ganhou força rapidamente, tendo edições não somente no MAPP, mas no Campus I da UEPB, em Bodocongó, na Vila do Artesão e até no Maior São João do Mundo. Em um ano de execução, dado que, com a pandemia da Covid-19, as práticas foram temporariamente suspensas, estima-se a participação de 50 cordelistas, oriundos dos mais variados municípios, como Guarabira, Monteiro, Mulungu, João Pessoa, Santa Rita e de regiões como o Pajeú. Na plateia estiveram mais de 200 pessoas entre trabalhadores do fazer criativo, apologistas, editores, estudantes, turistas e transeuntes da Rainha da Borborema, que utilizam o Açude Velho para suas caminhadas. Eles puderam ter acesso a pelo menos 40 novas obras. “Agora temos uma data mensal, em nosso calendário cultural, exclusiva para esse encontro e tendo o MAPP desempenhando seu papel máximo, sendo o anfitrião desses mestres”, explanou Joseilda.
Com o tempo, o Cordel no Museu também passou a dispor do apoio de Silas Silva e Nando César. Idealizadores da prática “A poesia a serviço da educação”, eles fizeram várias incursões no evento. Além disso, figuras conhecidas na seara cordelística de Campina participaram de maneira ativa do empreendimento, desde o seu embrião, a exemplo do poeta Alfrânio de Brito, igualmente curador da Sala de Cordel do MAPP e o xilogravurista Josafá de Orós.
Sobre a ACVPB
Na atualidade, a Academia de Cordel do Vale do Paraíba tem sido parceira da Procult em dezenas de ações. No “Concurso de Cordel Jackson do Pandeiro: 100 anos do Rei do Ritmo”, por exemplo, atuou de maneira crucial, constando tanto na Comissão Julgadora, como na Comissão Organizadora. Fundada em Itabaiana, em 24 de janeiro de 2015, por poetas cordelistas da Paraíba, Rio Grande do Norte e Pernambuco, a ACVPB tem suas raízes fincadas nos festejos pelo sesquicentenário de nascimento de Leandro Gomes de Barros, pois nesse contexto foi delineada. De início abrangia 28 poetas, completando-se posteriormente as 40 cadeiras. A entidade almeja, entre outros tópicos, conforme Marconi, promover oficinas de cordel centradas na estrutura de rimas, oração e metrificação, incentivar novos cordelistas, favorecer a regularidade de saraus, estabelecer e consolidar o cordel nas escolas, além de propagar o gosto pela leitura e a literatura do gênero.
O Cordel na Academia
De acordo com a Biblioteca Digital de Teses e Dissertações (BDTD), órgão ligado ao Instituto Brasileiro de Ciência e Tecnologia (Ibicti), de 2012 a 2020 foram apresentadas 12 teses e dissertações na UEPB (sendo 2 e 10, respectivamente), tendo como assunto a palavra “Cordel”. Entre as 33 instituições que aparecem na pesquisa, a UEPB sai na frente, seguida da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) com 10, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) com 9, e da Universidade Federal do Ceará (UFC), com 8.
Repente, Toada, Aboio, Cordel, Cantoria, Embolada : conhece as diferenças?
Em uma entrevista dada à Fundação Joaquim Nabuco, em 2008, Bráulio Tavares explana que o aboio, de origem Ibérica, surgiu como uma maneira de comunicação entre o vaqueiro e o boi, sendo uma característica da profissão do vaqueiro. É que aqueles que cuidavam do gado passavam muitas horas com os animais e estabeleciam um tipo de código, por isso os sons articulados em forma melancólica, tipo “êê, ôô”, como uma onomatopeia musicada.
Quando entre seus pares, os vaqueiros estendiam as entonações vocálicas fazendo composições ali mesmo, espontaneamente, e assim nasceu o aboio de improviso. Às vezes, dos versos surgem verdadeiras epopeias, histórias que atraem a população pela riqueza de detalhes – são as toadas. Mas “toada” em si, o termo, pode dizer respeito tanto à cantoria nordestina ou à música de vaquejada. Grosso modo, a toada seria advinda dos versos de aboio e teria um ritmo marcado, com uma voz firme e melodiosa. Geralmente no meio delas há a presença do aboio. Se as toadas ficam famosas, vem um grupo musical e as grava como músicas. Foi o caso, por exemplo, de “Saga de um Vaqueiro”, da Banda Mastruz com Leite.
Em seu livro “Cordel, Leitores e Ouvintes”, Ana Maria de Oliveira Galvão, enumera os vários nomes dados aos folhetos: “livrinho de feira”, “livro de histórias matutas”, “romance”, “folhinhas”, “livrinhos”, “livrozinho ou livrinho véio”, “livro de história antiga”, “livro de poesias matutas”, “foieto antigo”, “folheto de história de matuto”, “poesias matutas”, “histórias de João Grilo”, “história de João Martins de Athayde”. Pode-se chamar de cordel a poesia popular caracterizada por sua publicação em folhetos, que é a forma tradicional de impressão, com capas geralmente feitas em xilogravura. Já o repente é a poesia improvisada feita pelos cantadores. Estes recebem os motes da plateia, desenvolvendo tudo quase que instantaneamente, “de repente”. Quando acompanhado de instrumentos como a viola de sete cordas, alcunha-se cantoria, quando do pandeiro, embolada.
Outra característica a diferir os dois são as rimas. Na embolada, elas são livres, bastam que sejam harmoniosas, mas na cantoria há a questão da métrica e das sílabas poéticas. Além disso, nas emboladas, usualmente ocorre o ensaio da apresentação, muitas composições são “de trabalho”, ou seja, antecipadas.
Texto: Oziella Inocêncio
Fotos: Arquivo Procult/Codecom