Grupo de Estudos Paulo Freire e comunidade potiguara dialogam sobre desafios dos povos originários

21 de abril de 2021

Por que você não vive numa oca? O seu cabelo não é completamente liso, você é índio mesmo? E índio usa celular? Pode ser apenas “brincadeira”, desinformação ou pura falta de senso, mas essas perguntas são dirigidas com insistência àqueles que integram os povos originários no Brasil. Esse tipo de preconceito foi um dos tópicos mais abordados em uma conversa ocorrida na última sexta-feira (16), com membros da comunidade potiguara de Baía da Traição (PB). A atividade, promovida pelo Grupo de Estudos Paulo Freire (GESPAUF) da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), teve como sede física o Museu de Arte Popular da Paraíba (MAPP), mas se deu em formato de live, com a maior parte dos convidados estando online, em decorrência da pandemia do Novo Coronavírus. A veiculação foi feita pelo Canal da Instituição no YouTube, através da Coordenadoria de Comunicação (CODECOM).
Presentes à ocasião figuravam os professores potiguaras Míriam Gomes, Daniel Neto e Pedro Lobo; os membros do GESPAUF, José Cristóvão de Andrade, pró-reitor de Cultura da UEPB, e a professora Joseilda Diniz, uma das curadoras da área de Cordel do MAPP; o diretor da Editora da Universidade Estadual da Paraíba (EDUEPB), Cidoval Morais; o presidente do Conselho Estadual de Educação da Paraíba, José Jakson Amâncio; e o professor Afonso Celso Escocuglia.
Em sua fala, Míriam recordou das dificuldades no que se refere ao começo da educação escolar indígena. “Inicialmente, a nossa formação não se alinhava à nossa realidade, pois era realizada por professores não indígenas, então o que a gente sabia, o nosso conhecimento da vivência, oriundo da aldeia, era bastante relegado”, apontou. Míriam relatou, ainda, que naquele momento, na aldeia de onde é proveniente, havia 11 crianças com Covid-19. “É uma situação bem preocupante para todos e sobretudo para nós, alvos mais vulneráveis no Brasil do governo atual”, detalhou.
Para Pedro Lobo, é uma vitória enorme para os indígenas adentrarem uma universidade, mas ele destacou que é importante as instituições proporcionarem a permanência desses estudantes, além de cursos de formação específicos. “Muitos desistem, por encontrarem um ambiente às vezes pouco receptivo e inclinado às críticas. As pessoas nos cobram que sejamos estáticos, na visão delas precisamos provar que somos potiguaras e para isso temos que regressar ao nosso passado exatamente como era”, contou.
Ele explicou que, mesmo se qualificando, a maior honra para o indígena é voltar para o seu chão. “Aprender com as crianças às margens dos rios, pescar, visitar os roçados, saber qual solo proporciona determinada cultura, ir no manguezal, caçar mariscos, entender o mundo com os nossos anciãos, que são uma biblioteca viva, esse é o nosso universo potiguar”, disse.
Daniel Neto assinalou o quão fundamental é trazer essa discussão ao contexto social, notadamente apoiando esse diálogo na obra freiriana. “Acredito que podemos ter uma troca de saberes proveitosa, usando como aporte a empatia proposta por Paulo Freire, afastando as ideias preconcebidas a respeito do nosso povo”, informou.
Conquistas
Dentre os êxitos alcançados nos últimos anos, eles citaram o Programa de Apoio à Formação Superior e Licenciatura Indígena (PROLIND), criado em 2005, no âmbito do Ministério da Educação (MEC), e a fundação, em 2004, da Organização dos Professores Indígenas Potiguaras (OPIP). Através do primeiro se oferta uma educação superior aos indígenas a partir de três princípios: o ensino bilíngue (tendo o tupi e a sua revitalização como cerne), a interculturalidade e o cotidiano. Já a segunda é uma associação que reúne os professores indígenas dos municípios de Rio Tinto, Marcação e Baía da Traição. A OPIP objetiva discutir temáticas e políticas capazes de melhorar a educação escolar indígena e representa oficialmente os docentes potiguaras, os quais possuem uma vaga no Conselho Estadual de Educação da Paraíba. Lembrou-se como um marco, igualmente, a construção das escolas indígenas em 2005.
A atividade foi desenvolvida pelo GESPAUF em parceria com a Pró-Reitoria de Cultura (PROCULT) da UEPB, em alusão ao Dia do Índio, celebrado na segunda-feira (19) e também para comemorar o centenário de Paulo Freire, que ocorre este ano. Na abertura do evento, Joseilda Diniz declamou dois poemas de cordel, tendo como base a obra freiriana: “Dando ênfase a diversidade cultural”, de Luiz Amorim, e “Cordel a Paulo Freire”, de Medeiros Braga.
A plateia da live congregou a vice-reitora da UEPB, Ivonildes Fonseca, integrantes do GESPAUF e do Núcleo de Estudos e Pesquisas Afro-brasileiras e Indígenas (NEAB-Í) da UEPB, em Guarabira e Campina, além de demais interessados no assunto. Estiveram nela Marlucia Almeida, Graça Lima, Sílvia Teodulino, Lucila Andrade, Figueiredo Artur Muinge, Rita Cândido, Rizoneide Rodrigues, Sarah Letícia, Normana Passos, Aparecida Pinto e Alda Silva, entre outros. Da equipe da UEPB, figuravam, entre outros, o coordenador de Comunicação, Hipólito Lucena, Sandrinho Dupan, Natália Gonçalves e Laert Pinheiro.
Cícero Agostinho, Paulo Freire e os indígenas
O professor Cícero Agostinho, que faleceu ano passado, foi lembrado em todo evento, em especial por sua existência haver sido pautada pelos ensinamentos de Paulo Freire, a quem Cícero sobremodo admirava. “Tenho muito orgulho de fazer parte da UEPB e saber que ela está dentro desse cenário dando a sua contribuição, promovendo debates, sendo parte da mudança necessária para que o povo indígena tenha um presente e um futuro como Cícero gostaria, eticamente mais justo, politicamente mais democrático, esteticamente mais irradiante, espiritualmente mais humanizador, de acordo com a Pedagogia da Esperança freiriana. Nós tínhamos vários projetos e íamos começar a desenvolvê-los junto aos potiguaras, a pandemia atrapalhou um pouco nossos planos, mas eles serão postos em prática tão logo seja possível”, apontou Andrade.
Afonso Celso Escocuglia discorreu acerca de sua longa amizade com Cícero Agostinho. “Foram décadas de amizade, fico bastante feliz por estar aqui nessa homenagem, a vida de Cícero foi realmente dedicada ao respeito ao outro, como indicava Paulo Freire”, afirmou.
Conforme Escocuglia, o legado freiriano obtém alcance e notoriedade cada vez maiores, ganhando status continental. “É o terceiro autor mais citado das Ciências Sociais e Humanas do mundo. O livro Pedagogia do Oprimido está entre os 100 livros mais referenciados em língua inglesa. As críticas do governo atual a Freire são frágeis e não nos surpreendem. Ele pregava a solidariedade, a obra dele é baseada no fato de que não existe superioridade entre as pessoas, todos têm algo a ensinar e aprender. Se escutamos alguém falar da morte de milhares de pessoas e rir, fazer galhofa, dizer que não é coveiro, que não pode fazer nada, já podemos entender que tal sujeito não pode ser a favor de Paulo Freire, exatamente porque Freire significa o oposto. Ele vê a educação como expressão de amorosidade e empatia pela vida humana”, pontuou.
Segundo Jakson Amâncio, para viver Paulo Freire em profundidade urge descolonizar a educação. “Não apenas a educação escolar indígena, mas a educação inteira. É preciso que o negro e o indígena tenham o seu merecido lugar como protagonistas do processo de formação do território brasileiro. Eu acho muito interessante quando os indígenas se referem entre si como parentes. De fato, todos somos parentes e os indígenas foram parentes afastados de nós pela colonização. Também quero deixar aqui o meu apelo para que a UEPB instaure cotas para os indígenas. Seria maravilhoso que a Universidade assumisse essa missão, junto com a Secretaria de Educação e o Conselho”, finalizou.
Em sua fala, o professor Cidoval Morais ressaltou a alegria pelo convite para compor a mesa do evento. “É uma oportunidade excelente para aprofundar o diálogo, conhecer outras experiências e ser atuante, como é o esperançar freiriano, de modo que isso influencie nossa tomada de decisão para uma realidade melhor”, asseverou.
 
Texto: Oziella Inocêncio