Dia da Consciência Negra: os desafios para combater preconceitos e a luta por representatividade social
“A luta pela liberdade não tem preço”. A frase do professor e antropólogo brasileiro-congolês, Kabengele Munanga, contribui para uma reflexão sobre o que representa a história do povo negro no Brasil que, durante três séculos (de 1550 até 1888), sofreu com a escravidão. Mesmo assim, 131 anos após a libertação das correntes escravocratas, ainda é preciso debater sobre o desenvolvimento e a consolidação de políticas públicas de afirmação e combate às desigualdades que recaem sobre os negros. Nesta quarta-feira (20), quando celebra-se o Dia da Consciência Negra, a Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) chama a atenção para o tema e reafirma seu papel de Instituição cidadã aprofundando essas questões com estudantes e servidores que dialogam sobre o assunto.
Participante das discussões que envolvem a temática do povo negro, o pró-reitor de Cultura da UEPB, professor José Cristóvão de Andrade, afirma que a Instituição sempre foi um campo aberto para o debate no que se refere a orbitar temas que muita vezes são deixados de lado por carregarem em si estigmas sociais. Mesmo que muitas vezes o foco no desenvolvimento da ciência, tecnologia e inovação tenha pautado a academia, se sobrepondo a assuntos referentes à desigualdade racial, ele destaca a necessidade de avançar nessas questões, para que a Educação possa dar sua contribuição para a promoção da igualdade social.
“A UEPB trata dessa temática há bastante tempo. Estou inserido há 27 anos na Instituição e sempre pontuamos esse debate na academia. Seja com a participação de movimentos sociais ou entidades ligadas em defesa da igualdade social, bem como com as escolas que procuram a UEPB para contribuir com atividades de formação educativa, que ajudam a construir relações étnicas junto aos processos curriculares. No que se refere ao Dia da Consciência Negra, digo que esse dia é de reflexão, de grande valia para a sociedade brasileira e para os movimentos sociais que lutam contra o racismo e o preconceito racial no Brasil. Digamos que é um momento de celebrar a luta e nossa memória”, avalia o professor.
Negro, de origem humilde, Andrade se orgulha da história que construiu, tanto no que diz respeito à luta por igualdade de direitos, como também de combate ao racismo. Segundo ele, a escalada para o negro torna-se ainda mais íngreme devido às condições sociais que enfrenta, seja na busca pelo ensino superior, pelo mercado de trabalho ou, principalmente, devido a cultura do racismo que, segundo ele, ainda está muito presente na sociedade brasileira. Para superar essas adversidades, Andrade viu na educação o caminho onde, além de se formar como cidadão, poderia contribuir na busca po justiça social para aqueles que, como ele, também enfrentaram dificuldades.
“Eu comemoro vitórias pela minha própria história de vida e família oriunda de negros. Da comunidade onde nasci, cresci e sobrevivi, a gente percebe que são poucas pessoas que chegam ao curso superior. Depois, na condição de professor universitário, de dirigir o Sindicato Docente, de assumir cargo de pró-reitor e até disputar uma eleição para reitor como disputei. Todos esses momentos foram desafiadores e de grandes vitórias, porque quando a gente olha para trás a gente vê o quanto é grave esse processo de exclusão. E essa exclusão acontece devido ao racismo, a uma cultura e ideologia do racismo que foi fincada na sociedade brasileira ao longo dos séculos e que tem que acabar”, destaca o pró-reitor de Cultura.
Trajetória semelhante tem a pedagoga e pós-graduanda da UEPB, Luciene Tavares. Natural da Comunidade Quilombola Caiana dos Crioulos, próximo à cidade de Alagoa Grande, ela carrega consigo uma história de luta, superação e determinação para não apenas transformar sua vida, mas a do lugar onde vive. Desde quando era criança e sua sala de aula era a sombra de uma Mangueira, ela acreditou que a escola tinha o poder de mudar sua realidade. Anos depois, lecionando e pesquisando, viu o quanto cresceu como mulher, cidadã e militante que representa pessoas que muitas vezes se sentem sem voz e sem representatividade perante as lutas sociais.
“A militância faz parte da minha vida desde criança. Desde muito cedo faço parte desses locais. É onde me sinto representada, além de gostar de estar inserida nesse espaço. E foi aí que pude ter meu local de fala, enquanto criança negra, jovem e mulher. Foi uma abertura enorme que a militância deu para minha vida, além dos aprendizados que a vida trouxe para mim. Então, juntei minha militância ao meu trabalho na sala de aula para entender as relações dessa parte social e a minha vida educacional, onde aprendi a trabalhar com essas questões que envolvem coisas importantes para nosso povo”, afirmou.
Luciene enfrentou o racismo ao longo da vida, desde pequena isso foi algo presente. Contudo, nunca se intimidou em qualquer situação. “Na escola a criança negra já enfrenta isso. Seja com uma piada, ao falar do cabelo dela, e até mesmo na graduação. O preconceito está dentro da sala de aula, com frases racistas que as pessoas dizem que são normais, mas não são. E isso precisa ser desconstruído, essa imagem de negros estereotipados. Eu me revoltava, ia ao debate e a todo momento você tem que resistir. Agora, no Mestrado, pauto minha luta para me expressar abertamente e colocar as necessidades da população negra, como essas questões podem ser discutidas na academia e como os professores podem trabalhar com as crianças na sala de aula”, relata.
“Vivo lutando contra a vontade das pessoas de me ‘embranquecer’”
A autoafirmação é um dos fatores mais contributivos para a significação do indivíduo dentro de uma sociedade plural. Sobretudo em uma organização social excludente, onde tornou-se possível algumas pessoas negarem sua própria identidade para se encaixarem num modelo pré-definido. Lutando contra isso, a procuradora-geral da UEPB, Marina Torres, conta já ter enfrentado certas situações onde precisou se impor para confirmar sua paridade com a raça negra.
“Apesar de conter traços brancóides, como nariz afilado e boca pequena, eu precisei corrigir as pessoas quando elas tentavam me ‘embranquecer’. Eu vivo lutando contra isso. As pessoas dizem: ‘você não é negra, não diga isso com você’. Isso significa o que? Eu me identifico como negra em qualquer lugar. Eu me vejo como negra desde sempre, eu fui criada e educada como tal e minha mãe teve um papel fundamental nisso de enaltecer minha cor de pele, meu cabelo crespo e tantas outras coisas. Esse é o mesmo racismo de quando eu já fui parada numa revista em aeroporto, por exemplo, por estar com o cabelo preso, para cima, estilo black power, e o segurança me parar para averiguar minha bagagem enquanto os outros passageiros seguiam seu percurso sem empecilhos”, relembra Marina.
A discussão sobre o lugar do negro na sociedade esteve pautada ao longo de toda sua vida, segundo Marina, desde criança, quando escutava que seu cabelo “não prestava”, até durante o período de faculdade e de ingresso no serviço público. “Onde eu chegava eu era a única de cabelo crespo. E as pessoas diziam que ele não prestava, que era ruim. Quem não presta e é ruim é o racismo. E isso é assim por uma razão estrutural, porque nossa sociedade é racista, fomos estruturados em bases racistas, continuamos com práticas racistas e ainda resistimos muito em superar isso. Pensando nisso é que eu coloco e defendo as políticas afirmativas”, enfatiza a procuradora.
Uma dessas políticas as quais Marina se refere é a de cotas raciais, que foram inseridas em programas de acesso às universidades e em concursos públicos, por exemplo. De acordo com ela, esse modelo tem o propósito de superar uma exclusão que vem de longe, para que pessoas negras tenham a oportunidade de ocupar espaços de relevância social e que, para isso, possam, a partir do seu lugar de mundo, levantar esse debate, discutir sua passagem, propor soluções, políticas e entender o cerne da questão da desigualdade no Brasil. Marina ainda reflete sobre a necessidade de se pensar em uma sociedade que entenda a inclusão e a igualdade racial como urgentes, o que possibilitaria uma mudança do paradigma racial existente hoje no Brasil.
“Por que a sociedade brasileira é tão resistente com as cotas para as universidades e concursos públicos, mesmo vendo claramente que nós negros somos maioria, mas não estamos em espaços de relevância social ou em destaque em termos de administração pública? Se tá na cara que aos negros cabe a pobreza, a miséria, a marginalidade e o crime, porque a sociedade brasileira ainda é tão resistente em relação a reconhecer a importância das cotas?”, questiona Marina.
Ela acrescenta outra reflexão sobre o assunto: “eu falo diretamente para as pessoas brancas que para elas entenderem a questão das cotas, elas precisam, em primeiro lugar, recorrer à empatia, à capacidade de olhar o outro e pensar como o outro vive, como e porque ele está ali, e também se despir dos seus privilégios. Não que as pessoas brancas tenham contribuído para os privilégios que elas têm, mas, efetivamente, eles existem e colocam as pessoas brancas a quilômetros de distância de vantagem das pessoas negras”, afirma.
Núcleo de Estudos reforça identidade negra
A obrigatoriedade do ensino de História da África e da Cultura Afro-Brasileira na Educação básica, imposta pela Lei 10.639/2003, vem contribuindo para reduzir lacunas referentes a espaços de discussão sobre o racismo e a representatividade negra na sociedade. Na Universidade Estadual da Paraíba, esse tipo de debate é ampliado com a atuação do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (NEABI), nos câmpus de Campina Grande e Guarabira, que reforça a mobilização em torno de assuntos que durante muito tempo não figuraram entre as pesquisas feitas na academia.
Como explica a diretora do Centro de Humanidades, professora Ivonildes Fonseca, o desenvolvimento das atividades do NEABI possibilita um salto na qualidade da produção de Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC) e eventos acadêmicos que têm como tema central a questão racial. “A partir do nosso trabalho na Universidade, vários professores começaram a trabalhar esses assuntos nas escolas. Isso foi muito positivo para a difusão dos estudos da cultura negra. Avançamos tanto que foi possível criar, em 2014, um curso de Especialização em Educação Étnico Racial na Educação Infantil”, conta a professora Ivonildes.
Aluno do Curso de História do CH e membro do NEABI, Paulo Roberto do Nascimento vê na possibilidade de se aprofundar na pesquisa sobre o povo e a cultura negra uma oportunidade grande para, primeiro, se conhecer melhor como negro, além de ampliar sua formação profissional como docente. Ele aponta a relevância do Núcleo de Estudos como um lugar onde os professores compartilham experiências e conhecimento de assuntos fundamentais para a formação docente.
“Me sinto pertencente da história do povo negro, sobretudo pela minha cor. E essa perspectiva de pesquisar sobre o negro no Brasil e na Paraíba é uma temática que eu me aproximo, me identifico e é muito bom para analisar a história de um povo que foi importante para a formação do Brasil e, através disso, ver que nós estamos fazendo um trabalho importante em prol de tentar acabar com o preconceito e o racismo. São estudos que contribuem para que outras pessoas possam também abordar essa temática em sala de aula”, diz.
Dia da Consciência Negra e o enfrentamento ao racismo
O ano era 1978, quando surgiu o Movimento Negro Unificado no País, que passou a promover uma série de ações para pensar a consciência negra e lutar contra o racismo no Brasil. Graças a isso, o Dia da Consciência Negra tornou-se uma data lembrada todo ano como representativa da luta da população negra. A escolha do dia 20 de novembro não foi aleatória, já que foi feita por ser a data da morte de Zumbi dos Palmares, em 1695. Zumbi foi o maior líder do Quilombo dos Palmares e inspirou inúmeras pessoas a lutarem por direitos igualitários em uma sociedade com graves feridas herdadas do período da escravidão.
Essa reflexão foi feita pelo professor Waldeci Ferreira Chagas, uma das referências na Paraíba sobre questões relacionadas à história do povo negro e, principalmente, no enfrentamento ao racismo. De acordo com ele, a abolição da escravatura não significou a inclusão das pessoas negras no Brasil como cidadãos, o que reflete em uma realidade extremamente complexa para o povo negro, que empreende uma luta diária para ter acesso a um processo de inclusão de homens e mulheres negras em vários setores da sociedade brasileira.
“Essa luta também é uma forma da gente enfrentar o racismo, exigindo dos governantes políticas públicas com esse objetivo, porque o que vai fazer com que a gente supere o racismo no Brasil é o Estado, sobretudo implementando iniciativas para a população negra, na educação, saúde, moradia, lazer, cultura. A gente vinha num processo, embora lento, mas vinhamos efetivando essas conquistas em governos anteriores. Mas, atualmente, nós temos um retrocesso, o que nos leva a implementar essas lutas novamente. Sem políticas públicas não há enfrentamento ao racismo. Por isso elas são importantes para que a gente supere essa ideia do racismo ainda presente no Brasil. E a importância do Dia da Consciência Negra está em a gente comemorar não só a memória de Zumbi dos Palmares, mas sobretudo a luta por nossa resistência”, afirma.
Do corte de cana à escrita de cordéis
As questões separatistas, as brigas e violências/ Que nós negros já sofremos, não são meras coincidências/ Precisamos lutar sempre para suprir as carências/ Carências de moradias/ De saúde, e educação/ Pois aquele que consegue uma boa posição/ Sabe o quanto lhe pesou, as chaves da libertação/.
Quem lê esses versos do poeta Jota Lima Cordelista, pode nem imaginar que esse cordel conta parte de sua história. Antes de se tornar um interlocutor da Literatura de Cordel, Josenildo Maria de Lima, técnico administrativo da UEPB, sentiu na pele as dificuldades para alcançar seus sonhos. Mais velho de uma família com sete irmãos, foi preciso experimentar a dura realidade do trabalho na roça para entender que a educação era o caminho mais viável para mudar sua condição social.
“Eu sou o mais velho de uma família de sete irmãos. Meu pai estudou até a 3ª série e minha mãe nunca pisou em uma escola, mas eles sempre me mostraram que a educação era o caminho de libertação para a nossa condição. Eu fazia 7ª série e disse a meu pai: ‘não quero mais estudar, vou trabalhar com o senhor a partir de hoje’. E fui um dia com ele para o corte de cana. Ele ganhou R$ 25 e eu R$ 2,50 depois de um dia todo trabalhando. Então ele olhou para mim e perguntou: ‘vai querer trabalhar ainda? Vá estudar, porque eu não quero que você continue aqui’. Daí eu vi que a educação realmente era o caminho e o quanto era difícil a condição do corte de cana, um lugar que só havia negros”, testemunha.
Servidor público, licenciado em Física e mestre em Ensino de Ciências e Educação Matemática, ambas as formações na UEPB, Josenildo usa o cordel para “abrir os olhos” da comunidade negra. Segundo ele, sua experiência de vida exemplifica o quanto é preciso lutar para mudar uma realidade onde o negro parece não estar inserido em posições de destaque. E a sua poesia tem contribuído, seja para sensibilizar pessoas que não têm instrução, como também aqueles que possuem escolaridade alta e que reconhecem nesse tipo de Literatura uma ferramenta de comunicação eficaz.
“Quando sou convidado para participar de eventos, olho para a plateia e ela está cheia de brancos e só dois ou três negros. Os demais palestrantes são todos brancos. Então eu penso: ‘se no Brasil a maioria é negro, mas eles não estão nesses lugares, aonde eles estão?’ Para estar aqui hoje eu tive que estudar de dia, de noite, de madrugada. Então eu uso a linguagem do cordel para chegar na mente das pessoas, porque ele tem uma linguagem direta, não importando se o outro é uma criança, ou um professor universitário”, explica.
Diante de tantas histórias e a evidente constatação de que o Brasil ainda está longe de ser um país igualitário, a luta da população negra segue e precisa ser cada vez mais encampada pelas instituições, poder público e a sociedade brasileira, que é essencialmente negra e deve estar consciente de seu papel cidadão. O racismo, o preconceito racial, a exclusão pela cor são mazelas sociais que, assim como a escravidão, precisam ser abolidas e a humanidade não pode continuar compactuando com a desigualdade, porque, como dizia Martin Luther King Jr, “a injustiça num lugar qualquer é uma ameaça à justiça em todo lugar. Agora é hora de sair do vale escuro e desolado da segregação para o caminho iluminado da justiça racial”.
Texto: Givaldo Cavalcanti
Fotos: CODECOM e aquivos pessoais
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