Dia Marielle Franco: mulheres da UEPB apresentam reflexões sobre preconceitos e violências enfrentadas

13 de março de 2021

“Ser mulher negra é resistir e sobreviver o tempo todo”, a frase da vereadora Marielle Franco, assassinada em 2018, resume o sentimento de tantas mulheres negras brasileiras que sofrem com uma realidade de violências que tem por base sistemas de opressão interseccionais que evidenciam preconceitos e intolerâncias a partir de questões de raça e etnia, classe social, gênero, religião, orientação sexual.

Neste 14 de março, “Dia Marielle Franco – Dia de enfrentamento às violências contra as mulheres negras”, incluído no calendário oficial da Paraíba, a partir de uma iniciativa da deputada estadual Estela Bezerra (considerando a data do assassinato de Marielle Franco), a Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) apresenta alguns depoimentos e reflexões de mulheres negras da comunidade acadêmica que tratam de questões como preconceito, intolerância, superação, autoafirmação, entre outras.

Participam desse diálogo as estudantes Naara Santos e Danielly Scalone, a bibliotecária Valéria Soares e a professora Sheila Gomes de Melo. Em comum, além dos episódios de discriminação e violência que já tiveram que enfrentar ao longo da vida, todas se auto reconhecem como mulheres negras, têm orgulho da raça e estão envolvidas com alguma iniciativa acadêmica, política e/ou social voltada à conscientização e construção de uma sociedade justa e livre do racismo e misoginia.

A concluinte do curso de Ciências Biológicas, Naara dos Santos, lembra que a violência contra mulheres negras e o preconceito existem e são um processo doloroso, mas, essa dor precisa ser enfrentada, questionada e, segundo ela, a união é a principal arma contra a violência.

“Meu pai é vindo de uma família negra, sou descendente direta de escravos, provavelmente vindos de Benin (África). Minha família por parte de pai ainda não consegue lidar bem com o que nossos antepassados viveram, eles odeiam brancos ainda hoje, já minha família por parte de mãe, acha que uma mulher bonita é uma mulher com cabelo liso. Com 15 anos, minha tia me ofereceu um tratamento capilar para esticar o meu cabelo, afirmando que eu ficaria muito mais feliz se eu tivesse um ‘cabelo mais elegante’. Nunca me sujeitei a isso. Tenho muito orgulho da história que carrego nas minhas veias, mesmo sabendo que a vida é bem mais difícil para uma negra, sou muito feliz com a cor que tenho, eu não a trocaria por nada”, relembra Naara.

Ao apresentar uma descrição de si mesma, a bibliotecária Valéria Soares, diz ser feminista desde que se entende por gente. Mulher, negra, gorda e de origem humilde, ela lembra que teve de enfrentar muitas batalhas até conquistar seu espaço na sociedade.

“Sou da periferia de Fortaleza, estudante de escola pública e com Ensino Médio concluído em supletivo. Nesse período que é anterior a essas pautas de cotas, mais identitárias no país, terminar o Ensino Médio e pensar em tentar vestibular era um ponto fora da curva, não éramos incentivadas a isso. Ainda assim, entrei na Universidade (UFC) em 1997, mas, por conta da escolha comum a muitas, entre a necessidade de trabalhar e vontade de estudar levei 10 anos pra concluir o curso de graduação. Em 2009, curso concluído, duas filhas na mala, vim embora pra Campina Grande assumir o concurso como servidora da UEPB. Em 2014 saio daqui pro mestrado em Portugal. Hoje, estou coordenadora adjunta de Bibliotecas, ponto alto da minha profissão, tenho orgulho de onde eu vim e onde cheguei e de todo caminho percorrido. Mas, sem dúvida, se você é mulher e mulher negra, conseguir encontrar o nosso lugar e superar as dificuldades é um desafio. Claro, é fruto dessa dívida histórica que vem da escravidão. Já somos colocadas pra baixo desde o começo”, avalia Valéria.

Para a estudante de Psicologia Danielly Scalone, que atualmente está construindo um Grupo de Estudos em Negritude e Saúde Mental e a União da Juventude Comunista, o ingresso no Ensino Superior foi uma possibilidade de fugir de estereótipos atribuídos às mulheres negras, localizar-se no mundo e dar sentido à trajetória de vida. Segundo Danielly, os episódios de intolerância, violência e preconceito podem ocorrer de forma sutil ou velada, mas, é necessário que tais questões sejam discutas e enfrentadas a partir da educação e conscientização social.

“Na minha experiência, esse tipo de situação é percebida nos olhares e nos discursos de pessoas que me posicionam como uma mulher agressiva, raivosa, perigosa. São situações cotidianas que sempre reforçam meu lugar à margem, de forma excludente. Então eu acredito que a violência racial estruture nossas relações sociais, de forma a ser urgente o processo de conscientização e educação sobre essa questão, sem perder de vista um horizonte de transformação. Uma pessoa que não tem conhecimento sobre questões raciais e de gênero reproduz a violência, assim como pessoas que possuem conhecimento sobre essas questões podem vir a reproduzir também. As instituições reproduzem. É esse caráter estruturante da violência racial que deve ser colocado no horizonte da superação”, avalia Danielly.

A educação também pode ser considerada a força motriz da vida da professora Sheila Gomes de Melo. Mestre em Educação, e vice-coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (Neab-í/Guarabira) a docente leciona há mais de 15 anos na Educação básica e há cinco anos atua na Educação Superior.

“Sempre trabalhei em instituições públicas de ensino (municipais, estaduais e federais), em Pernambuco, em São Paulo e na Paraíba, mas, em várias situações, senti o tom de espanto de algumas pessoas ao saberem que sou professora universitária. Há um estereótipo negativo construído acerca da mulher negra, que frequentemente tem sua imagem associada às funções ditas subalternas. Além desse tipo de situação, posso citar várias ocasiões de discriminação racial que vivenciei. Por exemplo, nos espaços de consumo, como em lojas, shoppings, etc., ocorre com frequência. Por várias vezes, ao entrar nestes espaços, as vendedoras e vendedores demoram para fazer a abordagem ou se dirigem para pessoas brancas. Nem sempre os casos são explícitos, muitas situações são sentidas apenas nos olhares”, reflete Sheila.

Interseccionalidade
Discutir violência contra mulheres negras na atualidade requer a análise a partir de uma questão chamada de “interseccionalidade”, que é a sobreposição ou intersecção de identidades sociais e sistemas de opressão, dominação ou discriminação que estão relacionados. Ou seja, marcadores de gênero, raça, classe, sexualidade, etnia, etariedade, dentre outros, não podem ser entendidos de forma desassociada, independente.

A pesquisadora Djamila Ribeiro reforça essa concepção ao defender que “pensar a interseccionalidade é perceber que não pode haver primazia de uma opressão sobre as outras e que, sendo estas estruturantes, é preciso romper com a estrutura. É pensar que raça, classe e gênero não podem ser categorias pensadas de forma isolada, mas sim de modo indissociável. (…) Nesse sentido, as mulheres negras vêm historicamente pensando a categoria mulher de forma não universal e crítica, apontando sempre para a necessidade de se perceber outras possibilidades de ser mulher”.

A bibliotecária Valéria corrobora com essa perspectiva ao afirmar que ser mulher já a coloca numa realidade de opressão e, sendo negra, essa condição é evidenciada. “Acredito que o preconceito permeia as nossas vidas mesmo que a gente não perceba. De atitudes simples como você ser acompanhada pelo segurança em uma loja, como quando você é impedida de falar por homens que, em geral, acham que dominam mais os assuntos em discussão que você, mesmo que você seja especialista nisso. Quando não confiam em suas capacidades por um pré-julgamento comum demais nesse mundo do patriarcado. Ser mulher já te deixa mais sujeita a isso, sendo negra aprofunda muito mais”, explica Valéria.

Para a estudante Naara um dos problemas com o qual as mulheres negras têm que lidar, que não atinge homens negros, é a pressão estética para que sigam o padrão eurocêntrico. “Já ouvi frases do tipo ‘ainda bem que minha filha não nasceu com o cabelo ruim como o seu’, ou ‘quero saber até quando você vai com essa moita’, ou ‘que cabelo alto, na sua casa não tem água’. Um certo dia, eu estava andando na rua, lembro que estava me sentindo a mulher mais linda do mundo porque tinha conseguido fazer um modelo de laço novo no turbante, de repente, um homem que vinha dentro de um carro gritou pra mim: ‘que cabelo feio’, minha autoestima foi pro chão na hora. Mas depois, decidi ignorar esse tipo de gente, e seguir em frente. O que importa é eu me aceitar como sou”, destaca.

Violência contra as mulheres negras
Segundo a bibliotecária Valéria Soares é importante pontuar que as mulheres negras são as que mais sofrem violência no mundo, e discutir alguns estereótipos que são atribuídos a elas, como o da hipersexualidade, o da subserviência da mãe preta, o da negra raivosa, é um caminho necessário para a superação dessa realidade.

Dados do Atlas da Violência no Brasil, de 2018, mostram que, de 2008 a 2018, a violência contra as mulheres negras aumentou 12,4%. Nesse sentido, o PL 1.313/2019 aprovado recentemente pela Assembleia Legislativa da Paraíba estabelecendo o dia 14 de março (data do assassinato da vereadora Marielle) para que sejam realizadas atividades de promoção da cidadania das mulheres negras da Paraíba, é uma das iniciativas que visam combater essa realidade.

A professora Sheila também pontua que as mulheres negras são as que mais sofrem com os diversos tipos de violência (física, simbólica, etc.) e ocupam a base da pirâmide social. Diante disso, a efetivação de políticas públicas voltadas para as mulheres negras é algo urgente e primordial. “Nós, mulheres negras, sofremos diariamente com as dificuldades nos mais variados espaços da sociedade. Muitos dos espaços que poderiam ser ocupados por mulheres negras não o são por causa da sociedade racista na qual vivemos. Sinto que temos que concorrer de forma muito desleal e, não raro, as oportunidades inexistem. No entanto, como já mencionei, não são todas as situações explicitas”, aponta.

Recentemente, a UEPB, que conta com cotas sociais desde 2006, iniciou uma série de discussões no sentido de ampliar a inclusão social proporcionada pela política de reserva de vagas agregando um sistema de cotas raciais. Atualmente, de acordo com a Resolução/UEPB/CONSEPE/058/2014, 50% das vagas dos cursos de bacharelado são reservadas para estudantes oriundos de escolas públicas.

Uma comissão formada por estudantes, técnicos administrativos e docentes da UEPB, e representantes dos diversos setores de Ensino, Pesquisa e Extensão têm aprofundado o debate sobre as cotas raciais e futuras ações a serem implementadas na UEPB. Além dos membros da comunidade acadêmica tem participado dessas discussões representantes do Movimento Negro de Campina Grande, da Câmara Municipal de Campina Grande, além de docentes da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

Texto: Juliana Marques
Fotos: Divulgação/Arquivo Pessoal